domingo, abril 9

A articulação como saída para os impasses do setor musical

06/04/2006 da Redação

A letrista e produtora fonográfica Cristina Saraiva já está deixando sua marca para a MPB, com composições suas gravadas por artistas como Ná Ozetti, Leila Pinheiro e Chico Buarque, por quem já foi publicamente elogiada. Além de atuar no lado artístico da música, Cristina é uma observadora atenta dos movimentos do setor musical dentro da cultura brasileira. Ao lado de artistas como Ivan Lins, Francis Hime e Fernanda Abreu, ela faz parte do Núcleo Independente de Músicos, que juntamente com outras entidades, vem articulando a Frente Parlamentar Pró-Música, criada no Rio de Janeiro com o objetivo de criar bases para uma articulação política apartidária entre a classe musical e a Câmara Federal. No mês passado, o Núcleo e representantes de outras entidades estiveram reunidos com alguns deputados para apresentar suas propostas. Nesta entrevista exclusiva, Cristina fala sobre essa entidade e analisa algumas das questões centrais do setor musical no Brasil. CeM: Como você define o Núcleo Independente de Músicos? E foi esse movimento que tomou a iniciativa da Frente Parlamentar Pró-Musica?CS: O Núcleo é composto por um (perdoe a redundância) núcleo central formado por oito pessoas ( Alexandre Negreiros/ Cristina Saraiva/ Dalmo Mota/ Felipe Radicetti/ Fernanda Abreu/ Francis hime / Ivan Lins/ RIcardo Rocha) , articulado de forma informal com vários artistas e músicos.Como o Fórum Permanente de Música estava organizado de forma a ser o interlocutor junto ao Ministério da Cultura, sobretudo através da Câmara Setorial ( portanto, uma atuação na esfera do Executivo), achamos que poderíamos contribuir e fortalecer a nossa luta se enveredássemos para uma outra trincheira: o Poder Legislativo. Na realidade, já havíamos constatado que boa parte de nossas questões acabariam precisando passar pelo Legislativo, pois necessitariam de alterações - ou criação- de projetos de lei.Na realidade, respeitamos o espaço dos fóruns e não temos a intenção de nos colocar enquanto movimento antagônico. Ao contrário, as propostas encaminhadas através da Frente são justamente as questões consensuais levantadas pelos diversos fóruns. Muitos dos quais aliás, estão engajados ou apoiam esse processo de formação da Frente (como o Fórum de São Paulo, cujo coordenador Amilson Godoy esteve presente na reunião com os deputados).Simplesmente buscamos uma outra área de atuação, buscamos abrir um canal entre o Legislativo e as diversas instâncias de organização do movimento dos músicos.
CeM: O setor cultural de maneira geral é conhecido pela falta de articulação, o que é essencial para estabelecer um diálogo concreto com o Legislativo, por exemplo. Isso pode ser um empecilho nas conquistas da Frente Parlamentar?CS: Não creio. Na realidade, o setor musical passa por um momento de mobilização crescente. Na iniciativa do Núcleo Independente pela criação da Frente Parlamentar, já contamos com o apoio decisivo do Sindicato dos Músicos do Rio, do Fórum de Músicos de São Paulo, da Rede Social da Música e da Associação Brasileira de Música Independente (ABMI), que reúne mais de uma centena de selos nacionais. Estamos ainda em estreito contato com fóruns de músicos de outros estados, com a Academia Brasileira de Música, e com outras associações e organizações representativas. Se somarmos a isso o empenho e a disponibilidade de vários artistas de peso no cenário musical brasileiro, acho que não temos pouca coisa. Agora, é trabalhar.
CeM: A recente polêmica envolvendo a OMB (Ordem dos Músicos do Brasil) deixou alguma lição para o setor musical brasieiro?CS: Acho que a recente polêmica foi importantíssima para chamar a atenção sobre essa questão. Chamar a atenção da mídia, e principalmente, da própria classe musical, que tem muita dificuldade em se organizar e trabalhar politicamente. Entretanto, é preciso saber aproveitar a polêmica e a exposição. Não basta chamarmos a atenção para um problema. É preciso procurar os meios de resolvê-lo. E no caso da OMB, a solução passa pela alteração da legislação que rege a instituição. CeM: Foi necessária a cassação da licença profisional de Eduardo Camenietzki pela OMB para que o setor musical se mobilizasse mais contra o órgão e se articulasse mais a favor dos seus interesses?CS: A partir de 2003, com os seminários "Cultura para todos" promovidos pelo Ministério da Cultura em diversos estados, se iniciou um proceso de organização e mobilização da classe musical em torno de temas importantes para a categoria. A cassação do Edu Cam (embora o início do processo seja mais antigo) se deu em um momento onde já havia um esboço de organização. Inclusive , no processo de discussão nos Grupos de Trabalho e nas reuniões da Câmara Setorial referente à questão trabalhista, várias questões referentes à OMB já haviam sido levantadas, debatidas, e já se brigava por uma reformulação da entidade.Aliás, essa briga é até anterior à mobilização da classe, onde vários estados e grupos já vinham entrando com processos contra a OMB. Mas a cassação veio em um momento de maior mobilização a esse respeitoCeM: O que a OMB vem fazendo na prática a favor dos músicos brasileiros e qual deveria ser o papel ideal deste órgão?CS: Muito pouco. A OMB deveria, por um lado, ter uma atuação política decisiva em favor dos músicos - agir no sentido de influenciar o Congresso e o Executivo na aprovaçao de leis e políticas públicas para a música no país, atuar junto ao ECAD na fiscalização do pagamento de direitos autorais, promover campanhas de concientização pública sobre a importância do respeito ao direito do autor e do intérprete, brigar por uma política de educação musical, etc . E por outro lado, a OMB deveria ainda atuar na área da assistência ao músico (um profissional extremamente desamparado) através de programas específicos, de sua capacitação profissional, através da promoção de cursos e oficinas,etc. Afinal, a OMB tem um enorme patrimônio e dispõe de verba bem razoável para investimentos - fruto das taxas cobradas anualmente de seus associados.CeM: Na sua visão, quais seriam atualmente as questões mais críticas para o setor musical no Brasil?CS: Problemas na área de difusão (onde a padronização comercial está matando a riqueza musical brasileira e a possibilidade de sobrevivência dos artistas), problemas na área do Direito Autoral ( tanto problemas internos de falta de transparência e outros de nosso escritório de arrecadação, o ECAD, quanto problemas externos e seríssimos de inadimplência e descumprimento da Lei do Direito Autoral), problemas de ordem trabalhista (a extensão de um mercado informal que desprotege completamente o músico, a questão da OMB), problemas de preservação de memória (onde não há nenhuma política para preservar esse enorme patrimônio nacional que é a música brasileira), questão de fomento, educação musical, etc. Enfim, talvez o maior problema seja que a música, definitivamente, não faz parte da agenda política de nenhum governo. Criou-se talvez a ilusão de que a música poderia sobreviver no mercado, e que não necessitava de uma politica específica para o setor. Acontece que por sua importância social, estratégica e econômica, a música brasileira é uma questão de Estado e como tal precisa ser encarada e cuidada.CeM: O ECAD sofre constantes críticas de artistas, que alegam falta de transparência nos processos de recolhimento e distribuição dos direitos autorais. A Frente Parlamentar Pró-Música solicita a realização de estudos para a possível criação de uma entidade controladora externa ao ECAD. Na prática, como essa entidade resolveria os problemas atuais relacionados ao direito autoral?CS: Na realidade, não é a Frente Parlamentar Pró Música que solicita a realização de estudos para a criação de uma entidade contraladora externa ao ECAD. A Frente apenas acolhe e encaminha as demandas que vem do setor. Essa é uma demanda que surgiu entre os músicos, e foi amplamente debatida na Câmara Setorial. A questão do Direito Autoral no Brasil é muito complexa, e se manifesta em duas vertentes: a do recolhimento do direito autoral e a da sua distribuição. Portanto, necessitamos brigar nessas duas frentes. No que diz respeito ao recolhimento, tanto é preciso aperfeiçoar as formas de aferição da execução pública, como é fundamental acabar de uma vez por todas com a inadimplência, que é altíssima. No que diz respeito à distribuição, sem dúvida a maior queixa vem da falta de transparência. É inconcebível que um órgão como o ECAD, que detem o monopólio legal da arrecadação e movimenta milhões anualmente, não tenha nenhum tipo de controle sobre sua movimentação.CeM: Um dos debates mais acirrados da indústria fonográfica nos últimos anos tem sido a questão da música digital. As gravadoras e parte dos artistas se posicionam contra, argumentando simplesmente que pirataria é crime. Mas alguns artistas vêm batalhando contra as próprias gravadoras pelo direito de liberar gratuitamente parte de sua obra na internet. Ao mesmo tempo, pensadores opinam que a atual legislação de direito autoral protege os intermediários, e não os artistas. Qual sua opinião a respeito e como equalizar os interesses comerciais da indústria, dos artistas e o do público, que questiona o preço alto dos cds ?CS: Trata-se de uma questão para lá de complexa, com vários lados. Sou contra a liberação gratuita de obras. Isso evidentemente fere o direito do autor, e mais ainda, pode ameaçar sua própria sobrevivência. Os artistas mais conhecidos em geral, não dependem do direito autoral para sobreviver. Normalmente, a parte maior de seus recursos vem da realização de shows. Entretanto, é preciso considerar que há autores - como eu por exemplo, que sou letrista - que não sobem em palco, não fazem shows, não vendem discos. São exclusivamente compositores e vivem apenas do direito autoral. Para esses, a situação torna-se muito grave e acredito que seja preciso sim garantir seu direito à existência profissional. Como dar gratuitamente a única coisa que eles tem para garantir sua sobrevivência?Quanto à atual legislação de direito autoral, não me parece que seja tão ruim . O autor é livre para administrar sua própria obra, se assim quiser. Se prefere colocá-la na mão de uma editora, que poderá levar aí 25% de administração, trata-se de uma opção, de um acordo entre partes. E se o compositor fecha o contrato - que hoje em dia, ao contrário de antigamente, é por tempo determinado ( 2, 3 anos) - é porque de alguma forma espera ter algum retorno, acha que isso lhe será conveniente.Com relação ao preço do CD, sinceramente, não acho tão abusivo. Talvez seja com relação a relançamentos e coletâneas, onde não há mais o custo da produção. Mas com relação a lançamentos, não. Sobretudo se consideramos o preço pelo qual o CD é vendido para a loja, que acredito que seja bem razoável. O problema é que muitas vezes o lojista joga mais de 100% no preço de revenda. Isso sim talvez devesse ser revisto.CeM: O projeto de lei 1048/ 2003, de autoria do deputado Fernando Ferro, tenta criminalizar o jabá, um dos maiores problemas enfrentados pelo setor musical atualmente. Se aprovado, ele bastaria para reprimir essa prática?Quais outras ações seriam necessárias?CS: Acho que não. Talvez seja algo como uma lei proibindo a corrupção.Além do que, cada vez mais o jabá começa a ser "institucionalizado", se transformando em verba de comercialização, com acerto nos respectivos departamentos comerciais das rádios. Mas trata-se de uma ferramenta importante e iremos brigar por sua aprovação.Com relação às outras ações necessárias, trata-se de uma pergunta extremamente complexa e de difícil resposta. Sabemos que o artigo 221 da Constituição, que trata da produção e programação das emissoras de rádio e tv, ratifica a função social desses veículos, e indica, como princípios a serem observados, a diversidade cultural e regional. Acredito que essa questão deverá passar por um amplo debate – na sociedade e no Congresso.No Congresso, um dos deputados da Frente Parlamentar que está super engajado no processo, o Dep. Gustavo Fruet, pertence à Comissão de Comunicação da Câmara, que é quem analisa em primeira instância a renovação da concessão para as rádios. Talvez esse seja um caminho. Se conseguirmos envolver outros parlamentares dessa Comissão, poderíamos abrir uma grande discussão na Câmara sobre rádio, função social, renovação de concessão, respeito à diversidade. Daí poderíamos pensar em soluções que ao mesmo tempo que resguardassem o livre direito de veiculação de músicas e a saúde financeira das rádios, evitassem a situação que ora presenciamos de vermos 96% da produção musical brasileira relegada ao total anonimato enquanto apenas 4% ocupam sistematicamente , muitas vezes com a mesma canção, o espaço radiofônico nacional.Com relação à sociedade, é preciso primeiro desmontar essa idéia de que uma música toca dez vezes ao dia em todas as rádios por que é um grande sucesso. O público não pode ser induzido ao erro. Toca porque o espaço foi comprado, como em qualquer transação comercial.Depois, é preciso um aprofundamento sobre a importância de se preservar a nossa diversidade musical, de abrir espaço para a enorme e riquíssima produção musical brasileira. Talvez algo como uma campanha pró diversidade, ou quem sabe algum tipo de incentivo para as rádios que observarem esse princípio.
Publicado no site Cultura e Mercado
http://www.culturaemercado.com.br/setor.php?setor=2&pid=463